quarta-feira, 13 de maio de 2009

O estudo da própria obra

Já faz mais de um mês que estive em Curitiba numa semana intensiva de tradução com Beti e Ricardo. Minha intenção neste post é colocar em evidência alguns aspectos relacionados a minha intervenção no projeto e reflexões sobre o processo tradutório das obras-próprias Amarelo e Quase Nu.

Parece-me agora que o desdobramento mais destacado da fase de tradução do projeto foi a compreensão do próprio trabalho, da obra. Beti comentou sobre o “poder performativo” da obra e da sua autonomia em relação ao autor. Deve-se levar em consideração a diferença entre tomar como ponto de partida da tradução a obra, aquilo que se dá a ver ao espectador, ou, além dela, os diversos aspectos envolvidos no processo de criação da obra. Uma tradução deve ser feita a partir da obra e não dos elementos que estavam presentes em sua criação, pois eles estão confinados na imaginação do autor e só existem como aparecem materializados na obra. O problema é: como olhar para o próprio trabalho? Com que ferramenta?

Beti colocou o Amarelo como um “sistema multi-níveis”, distribuído em diversos níveis de descrição ou organização. Ricardo apresentou no “diagrama do Quase Nu” os níveis que ele identificou em seu trabalho. A idéia de que a dança pode ser entendida como um sistema subdividido em níveis não é uma idéia nova. Rudolf Laban, em sua Análise do Movimento criou categorias (corpo, movimento, esforço e forma) e subcategorias para descrever cada um dos componentes do movimento. Este sistema de descrição já foi muito usado na observação analítica de dança. Entretanto, a idéia de sistemas multi-níveis tem outro background. Nos artigos escritos em colaboração com João Queiroz(1) sobre tradução intersemiótica(2) nos inspiramos em Stanley Salthe, que, muito sumariamente, afirma que um fenômeno pode ser descrito como uma hierarquia de níveis. Sugerimos, assim, que uma tradução pode ser compreendida como uma relação entre sistemas multi-níveis. Esta noção nos pareceu interessante como uma ferramenta para a descrição do fenômeno de tradução, pois, além de considerar os níveis da obra, considera as relações entre eles, que especificamos caso a caso. Em termos teóricos nos parece bastante produtivo este caminho, pois nos permite comparações mais precisas entre a obra traduzida e a obra tradutora.

Foi interessante utilizar esta ferramenta como parâmetro na prática de tradução. O exercício com Ricardo e Beti, com minha colaboração, foi de identificação dos níveis de seu próprio trabalho. Além de proporcionar mais parâmetros para a as traduções que produziram, o exercício se mostrou interessante, especialmente no caso do Quase Nu do Ricardo que ainda está se modificando bastante, como uma possibilidade de ferramenta do processo criativo. Entender o que o produto criado é auxilia a entender se o objetivo está sendo alcançado.

Em nossos textos (Queiroz & Aguiar), consideramos que os níveis de uma obra de dança seriam identificados como itens gerais da obra, como “dinâmica de movimento”, “ritmo”, “iluminação”, e que seriam identificados de acordo com sua relevância em cada obra observada. Deste modo, os níveis não seriam fixos, mas seriam gerais, ou seja, eu poderia observar níveis parecidos ou semelhantes em outras obras. Na descrição de cada nível mais geral é necessário descrever como ele acontece e como se relaciona com os outros níveis. Entretanto, na transposição para a prática, o caminho se fez um pouco diferente, e houve uma mistura entre níveis mais gerais e outros mais específicos.

Beti compreendeu que poderia dividir Amarelo em três categorias de níveis: elementos, relações e evocações. As evocações, me parece, estão muito mais relacionadas ao processo de investigação do que ao resultado, mas Beti entendeu que seria interessante manter esta categoria. Ricardo, de forma diferente, criou diversas categorias para Quase Nu, e fez um esquema com esses vários grupos. Nas traduções, que tinham como fonte os próprios solos e como alvo diferentes mídias (vídeo, conto literário, desenhos, pão, breviário, fotografia) o exercício dos níveis foi interessante para tornar visível/material a relação entre o solo de dança e a sua tradução, o que torna possível monitorar a tradução. Creio que este método pode auxiliar criadores que estejam em diferentes fases de seu trabalho de criação. Entender o que a obra “mostra” ao público pode ser uma boa ferramenta para continuar elaborando o produto do trabalho criativo.

Daniella Aguiar

Notas:

1. João Queiroz [www.semiotics.pro.br] é professor do Instituto de Artes da UFJF onde coordena o Laboratório de Tradução Intersemiótica. Um dos textos que publicamos sobre o assunto está no link: http://idanca.net/lang/pt-br/2008/02/01/transposicao-e-recriacao/5231/

2. Transmutação de signos entre sistemas semióticos de diferentes naturezas, e.g. literatura  cinema, de acordo com Roman Jakobson.

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